quinta-feira, 26 de julho de 2012

Impressões sobre a Cidadela, de Exupéry


É característica humana eleger preferências. De toda ordem elas existem e comprovam a assertiva. Países, cidades, lugares, alimentos, profissões, amizades e companhias afetivas, autores literários, compositores, artes no sentido amplo, opção religiosa são privilegiados ao longo de nossas trajetórias. A empatia tem origem profunda ou não, a poder inclusive surgir por mero acaso. Geralmente, a escolha feita tende a sedimentar-se ou servir, acúmulo certificado, para outras escolhas ramificadas daquela. Necessitaria o homem desses amparos a indicar-lhe o norte, e fazem parte de sua formação integral.
 
No final de 1958, estudava em Paris e, ao tocar nos cursos de piano de Marguerite Long, encontrei o ex-cônsul da França em São Paulo, Baron André de Fonscolombe. Diplomata na acepção, era também um amante da música, pois tocava e cantava com prazer. Convidou-me para ir ao seu apartamento na Avenue Hoche, nº 4. Nascia um relacionamento que se prolongou por um bom tempo. Depois, como diplomata sediado no Quai d’Orsay – corresponde ao nosso Itamaraty –, ele foi ocupar um outro posto fora da França.
 
Durante esse período, quase todas as quartas-feiras à noite jantava informalmente com Monsieur le Baron, em companhia de sua esposa, filhos, Simone de Saint-Exupéry, prima irmã do anfitrião, e um príncipe russo. Poderiam ser apenas reuniões triviais, não fossem as extraordinárias sessões após o jantar. André de Fonscolombe apagava as luzes e deixava apenas um abajur aceso. Simone, irmã de Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), sentava-se perto da luz, retirava de uma pasta algumas folhas e lia trechos de Citadelle, obra prima do piloto-escritor. Foram inúmeras as sessões de leitura nas quais, pausadamente, Simone enfatizava os escritos e os vários segmentos juntados, a fim de se chegar ao texto final, que seria publicado em 1959, com outras obras do autor, na coleção Bibliothèque de la Pléiade (France, NRF, 1008 págs.). Simone esteve à testa desse hercúleo trabalho, no qual não faltou a interpretação de palavras chaves de Citadelle, mas com significados diferentes no transcurso das narrativas que compõem o livro. Dissera que o trabalho fora imenso, pois Saint-Exupéry escrevia e por vezes deixava gravado alguns textos, que eram transcritos posteriormente. Fez-nos ouvir alguns desses registros com a voz do autor. Os textos de Citadelle, muitas vezes, remetem à mesma temática desenvolvida sob outros contextos. Após uma interrupção para a tizane, eu tocava num Erard de meia cauda peças que estava a estudar. Voltava-se à leitura e, por vezes, ficávamos a ouvir sentados sobre os tapetes. Ao finalizar, Simone respondia às nossas indagações a respeito de Citadelle como síntese do pensamento do ilustre humanista. A magia dessas reuniões planava sob a aura do personagem no sentido profundo de sua dupla ação: o piloto solitário que entendia a mensagem das estrelas na longas noites a sobrevoar continentes e oceanos, e o escritor que em sua obra maior, Citadelle, captava as reações humanas, boas e más, a interpretá-las. Nos solilóquios aos quais o autor se impõe na obra, há sempre a profunda reflexão sobre o homem e suas aspirações. Simone sabia traduzir-nos intenções ocultas contidas na criação e Saint-Exupéry penetrava-nos através de parcela de sua dimensão. Apesar de o piloto-escritor ter em mente o plano geral da obra, ela ficaria inconclusa. Todavia, a reunião de textos visando ao livro final publicado daria a este monumentalidade. Como afirma Simone de Saint Exupéry na apresentação de um glossário da publicação mencionada: a obra aborda todos os problemas da destinação humana e das condições do homem.
 
Tinha perdido com o tempo o contacto com os Fonscolombes. André já falecera, mas seu primo irmão, Bennoit de Fonscolombe, lembrou-me, neste ano, traços marcantes do diplomata-intelectual e de sua extrema generosidade. Foi graças ao Baron de Fonscolombe e a sua prima Simone que me encantei com a obra de Saint-Exupéry, que será motivo de posts futuros. Li sua opera omnia, apreendendo reflexões densas e profundas. Foi tão marcante essa influência que, em 2004, acometido de um linfoma com prognóstico plúmbeo, a levar-me a muitas sessões de quimioterapia, pensei à noite, poucas horas após o diagnóstico: qual o livro mais marcante dentre todos aqueles que me fizeram companhia ao longo da existência? Precisaria encontrar o equilíbrio a partir da família, dos amigos verdadeiros, da música, da fé e da leitura. Esta poderia corroborar a paz interior necessária a tudo suportar. Veio-me a mente Citadelle. Durante um ano e meio reli, antes de dormir, duas ou três páginas e refletia. Finalizei a leitura, quase quarenta anos após a primeira visita à obra. Realmente um monumento. Ajudou-me a reencontrar a paz relativa sempre almejada. A saúde sub judice, nessa trégua que me foi concedida por um Poder Maior, faz-me entender ainda mais o maravilhamento de Citadelle e…da vida, através do fervor, uma das palavras paradigmáticas do livro. E tudo teria começado através da inefabilidade dos textos lidos por Simone de Saint-Exupéry. 

Fonte: http://blog.joseeduardomartins.com/index.php/2007/11/09/antoine-de-saint-exupery-2/
Autor: José Eduardo Martins

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Por James Francis Ryan

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