É característica humana eleger preferências. De toda ordem elas existem e
comprovam a assertiva. Países, cidades, lugares, alimentos, profissões,
amizades e companhias afetivas, autores literários, compositores, artes
no sentido amplo, opção religiosa são privilegiados ao longo de nossas
trajetórias. A empatia tem origem profunda ou não, a poder inclusive
surgir por mero acaso. Geralmente, a escolha feita tende a sedimentar-se
ou servir, acúmulo certificado, para outras escolhas ramificadas
daquela. Necessitaria o homem desses amparos a indicar-lhe o norte, e
fazem parte de sua formação integral.
No final de 1958, estudava em Paris e, ao tocar nos cursos de piano de
Marguerite Long, encontrei o ex-cônsul da França em São Paulo, Baron
André de Fonscolombe. Diplomata na acepção, era também um amante da
música, pois tocava e cantava com prazer. Convidou-me para ir ao seu
apartamento na Avenue Hoche, nº 4. Nascia um relacionamento que se
prolongou por um bom tempo. Depois, como diplomata sediado no Quai
d’Orsay – corresponde ao nosso Itamaraty –, ele foi ocupar um outro
posto fora da França.
Durante esse período, quase todas as quartas-feiras à noite jantava
informalmente com Monsieur le Baron, em companhia de sua esposa, filhos,
Simone de Saint-Exupéry, prima irmã do anfitrião, e um príncipe russo.
Poderiam ser apenas reuniões triviais, não fossem as extraordinárias
sessões após o jantar. André de Fonscolombe apagava as luzes e deixava
apenas um abajur aceso. Simone, irmã de Antoine de Saint-Exupéry
(1900-1944), sentava-se perto da luz, retirava de uma pasta algumas
folhas e lia trechos de Citadelle, obra prima do
piloto-escritor. Foram inúmeras as sessões de leitura nas quais,
pausadamente, Simone enfatizava os escritos e os vários segmentos
juntados, a fim de se chegar ao texto final, que seria publicado em
1959, com outras obras do autor, na coleção Bibliothèque de la Pléiade
(France, NRF, 1008 págs.). Simone esteve à testa desse hercúleo
trabalho, no qual não faltou a interpretação de palavras chaves de Citadelle,
mas com significados diferentes no transcurso das narrativas que
compõem o livro. Dissera que o trabalho fora imenso, pois Saint-Exupéry
escrevia e por vezes deixava gravado alguns textos, que eram
transcritos posteriormente. Fez-nos ouvir alguns desses registros com a
voz do autor. Os textos de Citadelle, muitas vezes, remetem à mesma temática desenvolvida sob outros contextos. Após uma interrupção para a tizane, eu tocava num Erard
de meia cauda peças que estava a estudar. Voltava-se à leitura e, por
vezes, ficávamos a ouvir sentados sobre os tapetes. Ao finalizar, Simone
respondia às nossas indagações a respeito de Citadelle como
síntese do pensamento do ilustre humanista. A magia dessas reuniões
planava sob a aura do personagem no sentido profundo de sua dupla ação: o
piloto solitário que entendia a mensagem das estrelas na longas noites a
sobrevoar continentes e oceanos, e o escritor que em sua obra maior, Citadelle,
captava as reações humanas, boas e más, a interpretá-las. Nos
solilóquios aos quais o autor se impõe na obra, há sempre a profunda
reflexão sobre o homem e suas aspirações. Simone sabia traduzir-nos
intenções ocultas contidas na criação e Saint-Exupéry penetrava-nos
através de parcela de sua dimensão. Apesar de o piloto-escritor ter em
mente o plano geral da obra, ela ficaria inconclusa. Todavia, a reunião
de textos visando ao livro final publicado daria a este monumentalidade.
Como afirma Simone de Saint Exupéry na apresentação de um glossário da
publicação mencionada: a obra aborda todos os problemas da destinação humana e das condições do homem.
Tinha perdido com o tempo o contacto com os Fonscolombes. André já
falecera, mas seu primo irmão, Bennoit de Fonscolombe, lembrou-me, neste
ano, traços marcantes do diplomata-intelectual e de sua extrema
generosidade. Foi graças ao Baron de Fonscolombe e a sua prima Simone
que me encantei com a obra de Saint-Exupéry, que será motivo de posts
futuros. Li sua opera omnia, apreendendo reflexões densas e
profundas. Foi tão marcante essa influência que, em 2004, acometido de
um linfoma com prognóstico plúmbeo, a levar-me a muitas sessões de
quimioterapia, pensei à noite, poucas horas após o diagnóstico: qual o
livro mais marcante dentre todos aqueles que me fizeram companhia ao
longo da existência? Precisaria encontrar o equilíbrio a partir da
família, dos amigos verdadeiros, da música, da fé e da leitura. Esta
poderia corroborar a paz interior necessária a tudo suportar. Veio-me a
mente Citadelle. Durante um ano e meio reli, antes de dormir,
duas ou três páginas e refletia. Finalizei a leitura, quase quarenta
anos após a primeira visita à obra. Realmente um monumento. Ajudou-me a
reencontrar a paz relativa sempre almejada. A saúde sub judice, nessa trégua que me foi concedida por um Poder Maior, faz-me entender ainda mais o maravilhamento de Citadelle
e…da vida, através do fervor, uma das palavras paradigmáticas do livro.
E tudo teria começado através da inefabilidade dos textos lidos por
Simone de Saint-Exupéry.
Fonte: http://blog.joseeduardomartins.com/index.php/2007/11/09/antoine-de-saint-exupery-2/
Autor: José Eduardo Martins
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Por James Francis Ryan